Albano Franco, um “imortal” sem letras! - Cláudio Nunes
“O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter.” Cláudio Abramo.
Engana-se quem pensa que as Academias de Letras pelo país afora são compostas exclusivamente por pessoas de reconhecido trabalho científico ou acadêmico. Não é bem assim, e isso não é de agora. E por incrível que pareça, talvez seja inerente a esse ambiente de “imortais” a presença de pessoas que não são valoradas pelas suas obras literárias, mas por outros atributos, inclusive os voltados ao hedonismo. Talvez o caso mais emblemático seja o de Ataulfo de Paiva, que foi um dos imortais da Academia Brasileira de Letras mais questionados. Tão questionado, que, ao assumir, o sucessor, José Lins do Rego, rompeu a tradição e, em lugar de exaltar as virtudes do morto, espinafrou sua notória vida de bon vivant e de pouca ou quase nenhuma produção literária. E mais, disse ainda o autor da célebre obra “Menino de Engenho” que Ataulfo chegou à Academia, isso por mais paradoxal que possa parecer, com certo incentivo do seu mais ilustre Imortal e fundador: Machado de Assis. Em seu discurso de posse, ao se referir a Ataulfo de Paiva, assim se pronunciou José Lins: “Sim, meus ilustres pares, esta nossa Academia vale mais que as regras do protocolo. Não serei um acadêmico protocolar, mas, para vos falar de Ataulfo de Paiva, preciso de coragem. Esta posse seria uma decepção para mim mesmo se viesse à vossa Companhia com subterfúgios ou sibilinas palavras. Tenho para mim que Ataulfo é a minoria de que não podem escapar todas as academias, sendo ele a contingência do tempo e exprimindo o que existe de exterior em nossa Casa.
As academias precisam dos Ataulfos, como ponto de referência, de elemento de sustentação em cálculos de resistência de material.
Conta-se que, certa vez, à porta da Garnier, o nosso fundador Machado de Assis, vendo o rapaz Ataulfo todo no melhor smart da época, de olhar brilhante e nariz de pássaro, não se conteve e lhe disse:
“Ficaria o senhor muito bem na Academia.”
Mas, pergunto eu, não haveria Machado de Assis desvalorizado a Academia com o seu gesto? Acredito que estava bem certo. Ataulfo de Paiva concentrava nas suas maneiras, na sua esperta alegria para todo o mundo, a perfeita elevação do seu meio social.
O Rio dos começos do século trazia de Paris o fulgor dos salões mundanos. Podia Ataulfo concentrar na sua total adesão às exigências sociais o modelo proustiano de Swann como fora o original, o que servira de inspiração a Proust, todo dos salões, do Jóquei Clube, das corridas, mas sem nenhuma espécie de interesse artístico, sem qualquer quentura de imaginação.
O poder de Ataulfo estava na sua invencível força para manobrar os homens. Nisto, ele foi admirável, com todas as manhas de um Brummell, sem orgulho e sem o esplendor do dandismo. Para vencer as outras criaturas, teve Ataulfo um extraordinário engenho. O que ele imaginava, conquistava ou conquistaria pelas escadas da vaidade e da gratidão de seus semelhantes.
Para muita gente de certa filosofia, o homem é o lobo do homem.
Chegou ao Supremo Tribunal Federal sem ter sido um juiz sábio e à Academia Brasileira de Letras sem nunca ter gostado de um poema. A natureza Ataulfo de Paiva se exercitava para os grandes saltos sem riscos de vida. Não havia nele o romântico dos trapezistas sem rede. Nada de perigos e pescoço partido. Ataulfo agia a frio, e vencia as provas mais difíceis.
Conta-se que, para a sua eleição à Academia, Rui (Barbosa) deixara a sua reclusão para vir votar no seu nome. Mas, para vencer assim, tinha-se a impressão de facilidade.
Engano. Nos seus silêncios de solteirão, o beija-flor recolhia as asas e suava e curtia mágoa. Isto dentro de casa. Lá fora o mundo era seu. O Swann se desdobrava em mil Ataulfos, cartões de visita, flores, as damas, os batizados, os casamentos, olhos molhados em missa de sétimo dia, parabéns a ministros, posses, dias felizes, quartos de defunto.
Quando atingiu aos limites de suas ilusões, tinha que bater-se pelas condecorações, pelos bons lugares em banquetes. Para evitar os enganos dos homens do protocolo, tinha o seu cartão impresso com as regalias, com os seus lugares já marcados. Nada de esquecimentos, nada de equívocos.”
Então, caros leitores, talvez toda Academia de Letras precise de um Ataulfo de Paiva a nos revelar a contingência social frívola do nosso tempo e o que existe de oculto no Areópago dos Acadêmicos. Quem sabe, em alguns pontos, Albano Franco, de quem se desconhece obras literárias de maior inspiração e conteúdo, se assemelhe em gestos e atitudes ao imortal Ataulfo. Ele, Albano, pode até ter se tornado um imortal, mas não se tornou um homem de letras.
Fonte: https://www.infonet.com.br/claudionunes/ler.asp?id=168895
Cláudio Nunes
Desde maio de 2006, tem um blog no Portal Infonet. Atua no jornalismo de Sergipe há mais de 15 anos, passando pela Gazeta de Sergipe, Jornal da Manhã, Diário de Aracaju, TV Sergipe e Jornal do Dia. Radialista e jornalista, em dezembro de 2006 publicou o livro "Liberdade da Expressão".